sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

VINTE ANOS DEPOIS...

IN “TEMPO MEDICINA ONLINE” de 2009.02.05
O governo está interessado em proceder a iniciativas legislativas que visam a reestruturação das carreiras, forma de qualificação dos médicos e outros aspectos relacionados com o exercício da profissão.
Uma revisão legislativa que, por diversas razões, desde há muito se impõe.
As organizações representativas dos médicos aparentemente estão divididas.
Apesar do que tem vindo a público, pelo que conheço do pensamento dos actuais dirigentes da Ordem dos Médicos (OM) e dos Sindicatos, não me parece que esteja subjacente a essa divisão uma concepção diferente das competências de cada uma das citadas organizações.
Por isso acredito que saberão acertar as suas posições e levar a bom porto as negociações que se avizinham.
De resto, bastará rever com atenção os estatutos da OM e dos Sindicatos para se tornar inequívoco que as competências de qualificação pertencem à primeira.
Até hoje a OM tem focalizado a sua atenção na qualificação de “especialista”: - os colégios de especialidade respectivos pronunciam-se sobre a idoneidade formativa dos Serviços, sobre os currículos a cumprir e participam nos júris de avaliação final dos candidatos.
Porém, a actual carreira médica prevê dois graus de habilitação – “especialista” e “consultor” – nunca tendo sido assumida qualquer intervenção da OM na atribuição do grau de consultor (!) nos vinte anos de vigência do diploma que instituiu o regime legal vigente.
E valerá a pena salientar que a obtenção do grau de consultor, por concurso de provas públicas, é condição “sine qua non” para acesso à categoria de Chefe de Serviço – categoria mais elevada da carreira, à qual tem acesso número limitado de médicos.
No entanto, logo no seu artigo 3º (Natureza e objectivo das carreiras), o decreto-lei nº 73/90 refere que “… A instituição das carreiras visa a legitimação, a garantia e a organização das actividades médicas no Serviço Nacional de Saúde, com base nas adequadas habilitações profissionais e a sua evolução, em termos de formação permanente e a prática funcional…” e “… O disposto no número anterior entende-se com a salvaguarda da competência legalmente atribuída à Ordem dos Médicos…” (ver artigo 6º do Estatuto da OM).
Em boa verdade, depois da negociação e publicação do diploma vigente, a OM não teve até hoje uma boa oportunidade para fazer valer as suas competências legais em matéria de qualificação.
E o facto de há vinte anos não o ter feito não é argumento válido (muito pelo contrário) para que mais uma vez se demita das suas responsabilidades.
Retirar ilacções
Estamos no momento dos médicos tomarem consciência da evolução que vivemos nos últimos vinte/trinta anos em matéria de prestação de cuidados de saúde no nosso país e daí tirarem algumas ilações.
O Serviço Nacional de Saúde (SNS) é uma realidade cuja implementação foi consensual e que, apesar de ainda ter muito para melhorar, é por todos reconhecido como uma mais-valia do pós 25 de Abril.
Porém, independentemente da acessibilidade, equidade e efectividade dos cuidados por ele assegurados, é uma realidade incontornável que no mundo em que estamos inseridos também têm um papel a desempenhar na prestação de cuidados, tanto as instituições privadas como as do sector social.
Papel que se tem tornado cada vez mais evidente à medida que vão surgindo formas de financiamento para serviços de saúde alternativas ao Orçamento de Estado, ou até pelo recurso do próprio SNS a essas instituições (programas específicos e convenções, por exemplo).
Hoje já é por demais evidente que o médico será cada vez menos um profissional com estatuto de “funcionário público”, embora desempenhando cada vez mais a sua actividade em trabalho por conta de outrem – seja em entidades públicas, privadas ou do sector social.
Por outro lado, a evolução do exercício da medicina como profissão liberal ilustra a posição residual que, num futuro mais ou menos próximo, lhe está reservada.
Mas a missão e valores do médico manter-se-ão.
Por isso se deverá centrar nos utentes dos serviços de saúde a atenção de todas as partes envolvidas na tomada de decisões: - a qualidade de cuidados devida a todos eles, independentemente das entidades titulares da sua prestação, torna imperativa uma clara responsabilização quanto à qualificação (definição de competências dos profissionais, forma de as obter, avaliação de idoneidade formativa de instituições) e, implicitamente, quanto à definição de indicadores qualitativos de desempenho das mesmas.
Responsabilidades de regulação
Tudo isto implica atribuir responsabilidades de regulação a uma entidade que, por razões fáceis de entender, deverá ser a Ordem dos Médicos. Nunca até hoje se sentiu a necessidade de uma tão rigorosa ponderação do papel da Ordem dos Médicos na regulação dos profissionais que representa.
Faz sentido que, pelo menos no que diz respeito às qualificações, as mesmas sejam reconhecidas e exigidas a todos os médicos, independentemente das instituições em que trabalhem (públicas, privadas ou do sector social).
Sustentados pelo denominador comum da qualificação, regulada pela OM, resultarão evidentes consequências, em termos de deveres e de direitos dos médicos, nomeadamente relacionados com a organização, desempenho e remuneração do trabalho.
Como decorre dos respectivos estatutos, acredito que os Sindicatos saberão tratar de forma responsável estas matérias, quaisquer que sejam as instituições com as quais, no futuro, estejam a negociar (públicas, privadas ou do sector social).
O decreto das carreiras médicas vigora há cerca de vinte e o estatuto do médico há quase trinta anos, ambos com aplicação exclusiva aos médicos que exercem funções profissionais nos serviços públicos.
È crucial assumir a realidade do nosso tempo.
Não estaremos conscientes do quanto o mundo já mudou nestes últimos vinte ou trinta anos?
Nuno Morujão